“Se, uma noite dessas, eu
não voltar para casa,
Por favor, não pense que te
deixei sozinha.
O mesmo lugar aonde os
animais vão quando morrem...
Não se pode escalar uma
montanha tão alta...
A mesma cidade aonde vou
quando durmo...
Não se pode atravessar a
nado um rio tão profundo...”
(Arcade Fire)
O vento
brincava com as folhas que a chuva de ontem derrubara. Discordava de sua
quietude e introduzia um movimento qualquer. Cores tristes passavam diante dos
olhos do homem: amarelo, vermelho, marrom. No céu, não havia espaço para o azul
e o cinza era majoritário. Um espelho do
coração. Tudo estava pronto.
A pequena casa
de madeira se erguia no alto de uma colina. Onde
tudo começou. E onde tudo poderia terminar. A grama, ao redor, era apenas
um resquício amarelado da exuberância de antes. Algumas árvores circulavam o
casebre, já desprovidas das folhas que a chuva e o vento reivindicaram. Em frente,
a grande mangueira desfolhada do balanço. A corda e a tábua ainda pendiam de um
de seus galhos, mas a podridão provavelmente atacara a ambos. Não tem problema, já não temos crianças.
No horizonte e
além, mais colinas disputavam a terra. Nelas, estendiam-se capões, cercas e
cupinzeiros. Fora isso, apenas a horta e a estrada de terra quebravam a
monotonia da paisagem. Não há nada aqui,
nunca houve. Do alpendre isolado, o homem não via nada além de paisagens
outonais. E, talvez por isso mesmo, fosse capaz de ver tudo o que havia para
ver.
Quando sentiu
um pingo desavisado atingir seu pé descalço, soou uma nota grave de algum
instrumento de cordas. E então outra nota, e outro pingo. Uma melodia molhada. Ju ainda tinha medo da chuva. Ou talvez fosse
da solidão. Quem canta seus males espanta.
Mas Ju não cantava. Apenas tocava seu violão meio desafinado, sempre que
pressentia a umidade.
Reuniu coragem
e se levantou. Arrastou seus pés pelo chão de madeira, deixando o alpendre para
traz, cada vez mais molhado. A calça jeans
longa demais se arrastava junto. Do vidro das janelas, via que a chuva
encobrira a paisagem. Toda a clareza de antes se foi.
Ju chorava, sem
deixar de se concentrar nos dedos que dedilhavam ou mudavam os acordes da
triste canção. O banco sem encosto em que se sentava parecia tornar sua arte
mais difícil. Mas alguns ajustes periódicos na posição pareciam compensar. Não
notou que era observada.
Lá fora, o
mundo despencava aos poucos. O impacto na parede e na janela simulava aplausos.
Ou talvez estivesse mais para estudantes protestando nas ruas. Quantos anos jogamos fora?, reclamavam
para os professores. Quantos nomes
esquecemos? Quanta vida não vivemos? E então um trovão vinha
contra-argumentar: não ouse generalizar!
A melodia
crescia. Ju queria subjulgar o som da chuva. Queria fazer o violão gritar mais
alto que tudo. Quem sabe as memórias saíssem correndo? Não, minha doce menina, não adianta fugir. Está em nós. Sorriu ao
se deparar com o primeiro olhar assustado da filha e a súbita interrupção da
melodia.
– Sua mãe se
foi e você sabe que não tenho muito tempo – o homem atirou as palavras,
impiedoso. – Não há outra forma de dizer e não há como adiar.
Ju concedeu seu
olhar ao instrumento e então o trouxe de volta ao pai. O que ela quer que eu diga? Ilusões? A mesma lágrima maquiava seu
rosto. Um relâmpago fez a lágrima brilhar. E em seguida um trovão fez-se ouvir.
Talvez estivesse pedindo a música de volta.
– Eu sei, pai.
Já passou. Não tem mais volta. A única direção é em frente – sua voz era baixa,
mas não houve soluço algum. Ela era filha de seu pai, afinal de contas. – Mas o
meu violão não se importa de me consolar, ao seu próprio modo, em seu próprio
idioma. Eu pergunto e ele responde. Só se cala quando eu peço.
Que idioma era
aquele, tão desafinado? Que relação
era aquela, tão antidemocrática? E
que filosofia era aquela, tão futurista?
Os questionamentos eram muitos, mas preferiu se calar. Não via utilidade em
poupar a filha do pior, mas também não via necessidade em expressar opiniões
contrárias. Esses eram adjetivos dele, que ela ficasse com os dela. No fim das
contas, apenas os nossos próprios adjetivos que perduram.
“Você é tão bom
quanto, sinceramente, pensa que é”, ouviu de sua esposa, nos tempos áureos da
juventude. Naquele tempo, havia crianças no balanço da mangueira florescida.
Mas, então, o homem já era impiedoso. “O homem mais egocêntrico do mundo é o
mais importante, então?”, questionara. “Sim”, respondeu a esposa, com um
sorriso, “se esse homem, sinceramente,
acreditar que é”.
– Toca pro pai,
então – disse, olhando nos olhos de Ju. – Faz a espera mais tolerável.
A moça
compreendeu o amor por trás da voz rude. Voltou as mãos às cordas. Foi quando
até a chuva pareceu se calar. As notas ecoaram diferentes, especiais. Só então,
o homem percebeu a beleza daquela arte. Desafinado
ou estilístico? Cordas, gotas, lembranças, folhas secas, palavras, outonos,
sorrisos. Nada era tão profundo quanto o instante que continha um pouco de tudo
aquilo.
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