domingo, 6 de janeiro de 2013

De volta para mim

“Gosto, como os animais, das florestas e dos mares, de me perder durante um tempo, permanecer a sonhar num recanto encantador, e forçar-me a regressar de longe ao meu lar. Atrair-me a mim próprio... de volta para mim.”
 [Nietzsche]

– Todo mundo precisa de alguma coisa que seja só sua – dizia a velha, estudando com mãos distraídas a integridade de seu coque. Os cabelos já muito brancos eram cuidadosamente esculpidos naquele formato todas as manhãs, como um ritual obrigatório. A pele enrugada e os movimentos lentos exibiam o peso da idade, mas o olhar opaco tinha muitos metros de profundidade.

O rapaz a olhou intensamente, como que a censurando. Era muito mais jovem, com olhos negros brilhantes e cabelos longos e lisos, da mesma cor. Suas feições traziam a impaciência da juventude.

– Não, não estou sendo egoísta – explicou a velha, em resposta ao olhar repreendedor do neto. – Muitas coisas devem ser compartilhadas, claro. O amor, a felicidade, o dinheiro... – sentiu mais censura naqueles olhos jovens, mas ignorou. – Tudo o que é externo, ou que se externaliza em algum momento, deve ser de alcance ilimitado. Deixe que todos bebam da mesma água, penso eu...

E então, antes de terminar o resto do discurso, endireitou-se na poltrona da sala mal iluminada. Aquilo estimulou que o rapaz fizesse o mesmo. Melhores colunas vertebrais, para que as histórias fossem mais bem recebidas.

– Mas encontre, dentro de si, algo que seja só seu – voltou a dizer, em voz enfática. – Cada pessoa do mundo é capaz de encontrar essa realidade interna e usá-la, quando necessário, para sorrir, descansar, sensibilizar-se, renascer. Lembrar que o mundo vai muito além daquilo que se vê. Que existe beleza nas árvores, nas pequenas folhas que já caíram, naquele sorriso inesperado após um comentário bobo... – e ela própria sorriu, com o olhar no Passado e no Futuro. – E então, você vai sentir uma necessidade incontrolável de compartilhar toda aquela beleza indizível com quem julgar merecedor. Mas já não terá palavras suficientes. E pode ser que não desperte a atenção que gostaria. Pode ser que te ignorem ou te desprezem... – o sorriso se desfez e um pesar estampou-se em seu rosto. – Mas a beleza ainda estará lá, não é mesmo? Se ela existir em sua ilha mental, meu neto, será um ponto de reserva, de preservação. A beleza que você guardou, só sua, brotará e se expandirá naturalmente, pelas vias do sentimento. E mais pessoas terão algo que é só seu...

O neto contemplou a avó em silêncio. Todos aqueles pronomes possessivos confundiram-no. Algo que seja só meu, mas que se expandirá e se tornará de todos, permitindo que mais pessoas tenham algo só delas...

– Preocupe-se em guardar a sua dose de inefabilidade – resumiu a velha, em tom austero, mas gentil. – E poderá perder-se nos outros para, depois, se reencontrar.

E, então, gerações distintas encontraram-se no mesmo sorriso.

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