“Gosto, como os
animais, das florestas e dos mares, de me perder durante um tempo, permanecer a
sonhar num recanto encantador, e forçar-me a regressar de longe ao meu lar. Atrair-me
a mim próprio... de volta para mim.”
[Nietzsche]
[Nietzsche]
– Todo mundo
precisa de alguma coisa que seja só sua – dizia a velha, estudando com mãos
distraídas a integridade de seu coque. Os cabelos já muito brancos eram
cuidadosamente esculpidos naquele formato todas as manhãs, como um ritual
obrigatório. A pele enrugada e os movimentos lentos exibiam o peso da idade,
mas o olhar opaco tinha muitos metros de profundidade.
O rapaz a olhou
intensamente, como que a censurando. Era muito mais jovem, com olhos negros
brilhantes e cabelos longos e lisos, da mesma cor. Suas feições traziam a
impaciência da juventude.
– Não, não
estou sendo egoísta – explicou a velha, em resposta ao olhar repreendedor do
neto. – Muitas coisas devem ser compartilhadas, claro. O amor, a felicidade, o
dinheiro... – sentiu mais censura naqueles olhos jovens, mas ignorou. – Tudo o
que é externo, ou que se externaliza em algum momento, deve ser de alcance
ilimitado. Deixe que todos bebam da mesma água, penso eu...
E então, antes
de terminar o resto do discurso, endireitou-se na poltrona da sala mal
iluminada. Aquilo estimulou que o rapaz fizesse o mesmo. Melhores colunas
vertebrais, para que as histórias fossem mais bem recebidas.
– Mas encontre,
dentro de si, algo que seja só seu – voltou a dizer, em voz enfática. – Cada
pessoa do mundo é capaz de encontrar essa realidade interna e usá-la, quando
necessário, para sorrir, descansar, sensibilizar-se, renascer. Lembrar que o
mundo vai muito além daquilo que se vê. Que existe beleza nas árvores, nas
pequenas folhas que já caíram, naquele sorriso inesperado após um comentário
bobo... – e ela própria sorriu, com o olhar no Passado e no Futuro. – E então,
você vai sentir uma necessidade incontrolável de compartilhar toda aquela
beleza indizível com quem julgar merecedor. Mas já não terá palavras
suficientes. E pode ser que não desperte a atenção que gostaria. Pode ser que
te ignorem ou te desprezem... – o sorriso se desfez e um pesar estampou-se em
seu rosto. – Mas a beleza ainda estará lá, não é mesmo? Se ela existir em sua
ilha mental, meu neto, será um ponto de reserva, de preservação. A beleza que
você guardou, só sua, brotará e se expandirá naturalmente, pelas vias do
sentimento. E mais pessoas terão algo que é só seu...
O neto
contemplou a avó em silêncio. Todos aqueles pronomes possessivos confundiram-no. Algo que seja só meu, mas que
se expandirá e se tornará de todos, permitindo que mais pessoas tenham algo só
delas...
– Preocupe-se
em guardar a sua dose de inefabilidade – resumiu a velha, em tom austero, mas
gentil. – E poderá perder-se nos outros para, depois, se reencontrar.
E, então, gerações distintas encontraram-se no mesmo sorriso.
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