“Algo preencheu o meu coração com nada.
Alguém me disse para não chorar.”
[ARCADE FIRE]
Um relâmpago ultrapassou
o vidro da janela fechada e veio fazer companhia às lembranças da jovem moça. A
chuva forte tentava repetir o feito, mas o vidro era uma barreira seletiva: permitia
a entrada de luz e impedia a de umidade. Ainda assim, permanecia constante o
som da chuva contra a janela; era um meio de perpetuar o esforço dos oprimidos.
A moça
encolhia-se em um grande e confortável sofá. Por vezes, virava o corpo para
outro lado, mas pouco alterava sua posição. Aquela parecia ser a melhor forma
de lidar com o vento frio da casa solitária e escura, já que não se dignara a
trocar os shorts por uma calça ou a
vestir meias. Seus longos cabelos escuros bagunçavam-se mais a cada novo movimento
no sofá.
Outro relâmpago
trouxe novas memórias. Lembrou-se das luzes da boate, também oscilantes. Das
taças e copos cheios, em sua mão. Da dança frenética e desorganizada; mas,
ainda assim, aceita. Dos beijos, muitos e aleatórios. Das amigas, lindas e
superficiais. E, é claro, dos idiotas que deveria impressionar. Sorria a noite
toda, como se não houvesse amanhã: alegria a qualquer custo.
Sempre que
quisesse, teria vários amigos para sair. Bastaria uma convocação em alguma
das redes sociais e muitos anunciariam a sua disponibilidade. Talvez, tivesse de
fazer sorteio para escolher quem teria a honra.
Sorriu e
encolheu-se ainda mais no sofá. Mas o sorriso foi gradativamente desfeito: um aperto
no coração o empurrava. Aquela sensação e o medo, cada vez mais constantes, levaram-na
ao cardiologista, dias atrás. Mas os exames não encontraram nada. Recuperara sua tranquilidade, ainda que algo
continuasse errado com o seu sorriso.
De repente,
ouviu um barulho vindo de trás de si. Virou apenas a cabeça para examinar. A
estante estava intacta, ainda cheia de livros que nunca leu. A grande mesa com
apenas uma cadeira, continuava ostentando os pratos e talheres utilizados no
jantar improvisado, que limparia no dia seguinte. O chão de madeira e as paredes
brancas reluziam com cada novo relâmpago. Tudo parecia estar em ordem. Virou a
cabeça novamente para a posição original.
A visão da mesa
lembrara-lhe da utilidade que dera às outras cadeiras. Estavam todas em seu
quarto, servindo de suporte para um cabideiro extra, pois seu guarda-roupa já não
comportava todas as suas necessidades de vestuário. Essas extensões eram
necessárias no mundo material. Em sua alma, entretanto, ocorria justamente o
oposto.
Outro barulho,
mais estrondoso, a fez levantar. Sentou-se no sofá, assustada, enquanto um frio
dilacerante percorria o seu corpo. Olhou novamente para a mesa e, aterrorizada,
notou que havia uma cadeira a mais, desde a última vez que olhara.
“Eu devo ter
confundido”, pensou, tentando se tranquilizar.
Levantou-se e
começou a andar em direção à escada que a levaria ao quarto. Nos primeiros
degraus, ouviu o barulho da janela sendo aberta. A chuva finalmente vencera e,
agora, inundava o chão de sua sala. Ignorou os sons e prosseguiu seu caminho.
Nos últimos
degraus da escada, parou novamente. Da sala, ouviu o barulho de múltiplos
passos, como se uma multidão percorresse a sala, pisando com força no chão de
madeira. Outra vez, um arrepio intenso propagou-se em todo o seu ser. Já sem
forças, deu mais dois passos, para concluir o lance de escadas e chegar ao
corredor que levaria ao quarto.
Mas, em sua
frente, no fim do corredor, viu a imagem grotesca de um fantasma. Era a sua
própria imagem, com apenas 4 ou 5 anos de idade, incrivelmente mais pálida. Por
mais aterrorizante que a imagem pudesse ser, havia algo de verdadeiro em seu
sorriso.
A moça levou a
mão ao coração. Ainda que vazio, estava disparado. Ao menos poderia atestar a
sua existência. Nervosa, limitou-se a soltar um sorriso nervoso e a perguntar:
– Que
brincadeira é essa?
– Você está
sozinha agora – disse o fantasma. – Não precisa sorrir.
3 comentários:
Arrepiei, sério.
Essa é a Sofia, gente.
Obrigado, Sofia.
=)
Surpreendente e inusitado final! Um ótimo conto.
Gostei muito da sua visita e comentário em meu blog,obrigada. O layout do seu também é bem bonito.
Volte sempre que o vento de levar ou um poema te tocar. :)
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