terça-feira, 5 de junho de 2012

A conspiração do fogo

"É quando perdemos a noção do tempo que medimos bem o seu artificialismo."
[Vergílio António Ferreira]

A cidade estava estática àquela hora da noite. Os motivos eram incertos, embora suspeitasse de alguma necessidade intrínseca de descanso, aliada à subvalorização da madrugada. O frio era intenso. Mesmo que a alta temperatura do dia chegasse a causar desconforto, a noite não conservava calor algum; era como se alguém desligasse o sol do mundo quando fosse hora de dormir.

Uma insone vitima da sociedade andava pelas ruas desertas, alheia à inércia generalizada. Preferia, como qualquer cidadão respeitável, dormir. Entretanto, consolava-se com o anonimato de seu defeito. Havia já alguns dias que saía para caminhar, mas notara que o sono dos normais não era facilmente perturbado. Além disso, qualquer teoria sobre caminhantes noturnos era taxada de falácia pelos Fantásticos especialistas da Universidade. Então, caminhava tranquilo. Para os devidos fins, ele não existia.

Ao seu lado, uma praça abandonada. Estranhou como as árvores, altas ou baixas, permaneciam imóveis. Nem um mero farfalhar. As poucas nuvens do céu flutuavam, estranhamente paralisadas, emoldurando a lua e as estrelas opacas. Pareciam ter guardado também o vento e o brilho.

De repente, sentiu uma pressão no ouvido esquerdo. Algo não ia bem. Seriam as moléstias da idade? Qual era mesmo a sua idade? Ou seria apenas algum inseto? A pressão atingiu também o outro ouvido. Estaria descendo algum vale? Ou acabara de decolar em um avião?

Foi quando se lembrou dos cientistas. Algo sobre o código genético dos macacos. Não sabia o que impressionava mais: o fato de compartilhar com todos os seres humanos uma estrutura genética muito semelhante ou a capacidade de uma única célula conter todo um genoma. Mas o silêncio externo, que não condizia com a euforia da biologia interna, trouxera-o de novo à cidade adormecida.

À esquerda, a janela de alguma casa escancarava-se. Obviamente, a criminalidade noturna não era uma preocupação. Pouco conseguia ver de dentro da casa, visto que as luzes estavam apagadas – as da casa e as da rua – além de não haver luar. Contudo, alguma luz estranha, sem procedência, parecia assinalar as coisas importantes, tais como a geladeira e a tevê.

A imagem da última trouxe a recordação do programa de humor a que assistia todos os dias. Era a febre nacional. Faziam rir de situações inusitadas. A mais comentada, aplaudida e engraçada foi um monte de crianças dançando ciranda. Fossem crianças iguais, não haveria graça alguma. Mas cada criança era de um tipo diferente: branca, negra, índia, loira, morena, careca, oriental, paralítica. Também rendeu muitas risadas o dia em que, no mesmo episódio, fizeram duas mulheres se beijarem e colocaram um homem para passar roupa. Só rindo mesmo...

Um tropeção o trouxe de volta para a realidade que, àquela hora, se distorcia. Quando tudo começou a fazer sentido, notou uma grande placa à sua frente.


A seta da placa apontava para a ampla escuridão à sua frente, que só não era completa devido a um pequeno ponto amarelo tremeluzente. A intuição que nunca tivera antes esclarecia: aquele era o seu destino.

Caminhou em direção ao ponto. A cada passo, a escuridão lateral era maior. A Lua e as estrelas do céu tornavam-se menos tímidas. O ponto amarelo crescia e cintilava mais e mais, com a aproximação. O que antes era silêncio começava a se povoar de sons: um grilo distante, um farfalhar de folhagens ocultas, o sopro do vento frio.

Olhou para trás. A cidade havia sumido. Na rua, na memória, na saudade. Olhou para frente. E o ponto agora era uma farta fogueira. Ao seu redor, sombras quietas riam e cochichavam. Algum resquício de sua ancestralidade trouxe à memória as histórias indígenas que se contavam antes de dormir. Ouviu tambores. E teve vontade de dançar.

Contudo, tudo o que fez foi caminhar. As sombras perceberam sua aproximação. Uma delas, como um vulto, levantou-se da roda e caminhou em sua direção. Os rostos da roda que se viraram para ver quem chegava exibiam as mesmas cicatrizes do tempo. E o rosto do homem que se levantou para saudar, também. Eram todos iguais.

– Ah, então agora você é capaz de acreditar na vida antes da morte? – questionou o homem que se levantara.

Sua voz parecia o mais humana possível. Trazia nas feições um misto de surpresa e alegria. Em seguida, fez gestos amplos e expansivos em direção ao fogo e à roda.

– Entre! – pronunciou aquele rosto conhecido, sorrindo de leve. – Antes tarde do que nunca.

3 comentários:

José Flauzino disse...

O fogo como um elemento anacrônico, que nos faz ser transportados para um espaço atemporal, no qual somos livres para viver e sentir! (bom, foi essa foi minha interpretação pessoal aushauhsa)

Que saudades dos seus ótimos textos! Também adorei o novo layout do blog! :D

Unknown disse...

"Uma insone vitima da sociedade andava pelas ruas desertas, alheia à inércia generalizada... Havia já alguns dias que saía para caminhar, mas notara que o sono dos normais não era facilmente perturbado."

Sútil na escrita e tocante no conteúdo, seu texto está demais. E como é difícil não ser levado nessa inércia generalizada que marca nossa sociedade atual. Não cair nesse sono dos normais pois acordar depois fica ainda mais difícil. Descobri o blog por acaso e curti muito. Parabéns.

Anônimo disse...

Que minuciosa a forma como você descreve o cenário, Vinícius. É em demasia envolvente a sua forma de escrita. Gostei muito do texto, que me surpreendeu quando eu já pensava estar encerrado.

Conheci seu blog através da Jaya Magalhães, e vejo que foi bom ter pago para ver.

Continuo acompanhano o blog.

Beijos,
Monique.

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