sexta-feira, 18 de março de 2011

Desconexões

“E quando o caos chegar
Nenhum muro vai te guardar
De você, de você, de você...!”
PITTY

A cidade tinha dessas ilhas de calor. E de silêncio. No alto, uma janela ineficiente. Não entrava vento, apenas saudade. Lá dentro, suor e lembrança. De fora, vinham as buzinas desesperadas dos milhares de solitários, que só queriam atenção.

Mas, lá dentro, o clima pesava. A porta entreaberta do quarto ensaiava contato. E a televisão da sala, talvez, correspondesse. Fazia até previsões otimistas, depois das habituais críticas ao governo... Mas, como em um contrato, tudo era imposto. Nada natural.

Para evitar o atrito e o conflito do contato, o contrato evitava aproximações. Cláusulas mil. E cuidado especial para o uso do banheiro. Teria sido a compartimentagem dos lares em cômodos a invenção do século? Viva a individualidade, ao menos em casa. Afinal, as pessoas, habitualmente, já pensam tanto na coletividade...

De repente, a porta da sala se abriu. Do quarto, o garoto ouviu um prolongado rangido. Em seguida, ecoaram alguns passos secos e, por fim, um grande suspiro.

O garoto saiu sorrateiramente do quarto, precisando abrir a porta um pouco mais para tal. Prosseguiu silenciosamente, esgueirando-se pelo corredor escuro. Ao fim do corredor, teve uma visão da sala. O indivíduo que acabara de chegar esticava-se ao máximo no único sofá dali. Tinha os olhos fixos na tevê. Alguma luz vinha das janelas, mas a escuridão predominava.

O garoto empalideceu. Quem era aquele que invadia sua casa, como se fosse a coisa mais natural do mundo? Com que liberdade esticava-se tanto em seu sofá? Quem permitira que assistisse à tevê e desfrutasse de seu conforto particular?

Foi quando ouviu o barulho de alguma coisa caindo no banheiro, cuja porta estava fechada. Um daqueles potes de xampu, talvez. Em seguida, uma descarga. E um pouco de água caindo na pia.

Correu para o quarto e apagou a luz. Fechou a porta e girou a chave, trancando-a. Ainda assim, ouviu da cozinha o apito do micro-ondas, avisando que o aquecimento de algum lanche fora concluído.

Só não se aqueciam os corações...

Um comentário:

José Flauzino disse...

Parece que nada mudou, da selva de madeira para a selva de pedra. Continuamos com a mesma insegurança e fragilidade.
Mas a vida é assim, e nessa urbe continuamos vivendo e aprendendo...

Belo texto, até suspeito qual foi a sua inspiração xD

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