domingo, 9 de janeiro de 2011

Intolerância

O silêncio reinava nas ruas desertas do Bairro Infrutífero. A noite havia muito se fora; dera lugar à madrugada inócua e incerta. O chão estava molhado, de uma chuva que durou meses. Qualquer queda, tropeço ou apoio em partes daquele cenário hostil resultaria em abominável e indelével mácula. Nas roupas e nas intenções.

Uma mulher apareceu subitamente. Caminhava soturnamente pelos becos e vielas ainda mais soturnos. Luz, ali, provinha exclusivamente do luar, quando provinha. Seu traje, sobretudo, tinha a cor dos muros e paredes pelas quais se esgueirava. Tinha, também, o aspecto vil de quem muito fala sobre nada, sobretudo. O vento gélido e úmido fazia esvoaçar a cauda de suas vestes, ao mesmo tempo em que a fazia encolher de frio. E medo?

De sua face, pouco se via. O capuz do sobretudo ocultava boa parte de seus cabelos, deixando apenas uma ou outra madeixa longa, escura e ligeiramente ondulada à vista. Seu sapato, devido ao impacto com o chão, produzia um som seco, ritmado e característico de seu andar. Não havia nenhum outro som. Nem sequer um inseto.

De repente, esse único som cessou. Inclusive seus batimentos cardíacos pareceram inexistir por alguns milésimos de segundo. Uma percepção tátil de algo gélido ocorrera na altura de uma das maçãs de seu rosto e se propagara por todo corpo, em um fluxo de adrenalina indescritível. Alguém a tocara.

– Sua pele continua linda – anunciou uma voz inexplicavelmente grossa e estridente.

A mulher se acalmou e, tentando ao máximo esconder o susto inicial, disse, calmamente:

– Já não era sem tempo – e sua voz era suave.

O homem retirou lentamente sua mão e ambos reiniciaram a caminhada. A canção dos passos voltou, reforçada agora pelo novo instrumentista. Enquanto andavam, o casal não se olhava. Pareciam ter o horizonte escuro como objetivo evidente e inalterável.

O homem vestia roupas relativamente formais. Uma calça social escura e uma camiseta clara, de mangas longas, com um paletó por cima. O mais caro de seu vestuário, talvez, fossem os sapatos italianos.  Destoando de tal formalidade, trazia uma mochila nas suas costas, que lhe dava ares juvenis. Seus cabelos eram escassos, restringiam-se às regiões laterais da cabeça. Enquanto andava, levou a mão à cabeça uma vez. Em seguida, ocupou-se de vestir luvas.

– Terá mesmo de ser feito? – perguntou a mulher, quebrando o silêncio.

– Ora essa, está definido há muito tempo – respondeu o homem, aparentemente surpreso, enquanto terminava de ajeitar suas luvas. – Você bem sabe disso!

– É muito grave – explicou a mulher, inexpressiva. – Apenas queria ter certeza.

– Pois você a tem – finalizou ele, reintroduzindo o silêncio das vozes.

Cruzavam, então, uma rua ligeiramente mais larga, mais abundante em pequenos edifícios e melhor iluminada, para, logo em seguida, retornarem a um cenário dos mesmos moldes do anterior.

Com a exceção de uma casa razoavelmente distante, de apenas um andar, que tinha algumas luzes acesas, o cenário exibia o mesmo aspecto anterior: escuro, sujo, molhado e estreito. Havia numerosas sacolas de lixo escoradas nas paredes, alguns cacos de vidro e garrafas espalhadas. O chão era cimentado, mas incrivelmente esburacado. Em muitos desses buracos nasciam pequenas plantas. Outros abrigavam pequenas poças de água e... sangue.

– Veja – apontou a mulher, com um tom de voz calmo.

O homem identificou o aspecto turvo do sangue nas poças, bem como os respingos das proximidades. A chuva lavara um pouco do que acontecera ali, mas, devido a toda a sua experiência, o homem sabia estimar quando acontecera a morte.

– Não faz muito tempo – disse, com sua voz peculiar. E, ao notar a expressão de dúvida da mulher, emendou: – Não há sinais de coagulação.

Ela assentiu, lentamente. Em seguida, investigou visualmente o lugar. Ao identificar uma escada que levava ao topo de um sobrado de dois andares, indicou-a ao companheiro. Foi a vez dele de assentir.

– Cheque a saída, por favor.

A mulher contornou o sobrado, enquanto o homem subia as escadas, levando consigo sua mochila. A subida fora dificultada um pouco pelo peso do que carregava nas costas. Não era tão mais jovem, mas também não era tão velho. Ao final, conseguira subir sem graves danos. A mulher já o esperava em cima.

– A saída está garantida – ela disse, enquanto o homem abria a mochila. – O Chofer nos espera no carro.

O homem parecia não ter gostado de ouvir aquele título, como se a palavra se referisse a alguma pessoa específica, em que não confiava. Mas continuou remexendo em sua mochila. Dela, retirou várias partes de algo preto e relativamente fino, que foi encaixando aos poucos. Enquanto isso, a mulher retirava um binóculo do sobretudo e se dedicava a investigar as redondezas da casa iluminada.

– Vai ser fácil – disse ela. – Posso vê-la daqui, no centro do ritual.

– Eles têm deuses? – indagou o homem, enquanto posicionava a sua arma já montada. – Se tiverem, tomara que nos perdoem.

Poucos segundos de silêncio persistiram até a gargalhada conjunta de ambos.

Havia uma mureta relativamente alta nos arredores daquela cobertura, de modo que o homem pôde posicionar sua arma com razoável conforto, na altura adequada. E ainda tinha a proteção visual.

– Há uma roda... – descrevia, a mulher, o que via pelo binóculo. – O alvo está no centro, dançando, com umas roupas esquisitas... Ela está próxima ao corpo do rapaz... Ele está estendido em uma mesa de pedra... Os membros da roda mexem os lábios... estão cantando algo...

– Encontrei – interrompeu o homem, quando finalmente ajustou sua mira.

A mulher lançou-o um olhar de desprezo, pela interrupção. Em seguida, começou a caminhar em direção à saída que havia checado. Fez um sinal para o motorista do carro, lá embaixo, que ligou o motor.

Ouviu-se um tiro.

– Está feito – anunciou o homem, erguendo o olhar.

Mas não encontrou a mulher. Ela adiantara-se na descida, pensou. Rapidamente, desmontou sua arma e colocou-a em sua mochila. Lançou-a às suas costas e seguiu para a saída. Naquele momento, ouviu o som do carro partindo. Ao chegar na borda do edifício, ainda pôde ver o cínico aceno da mulher, seguido de um beijo. O Chofer concentrava-se na direção. Em segundos, o carro já não era mais visível. O homem, com nítida feição de raiva, fez menção de descer a escada, mas conteve-se ao ouvir alguns barulhos. Lá embaixo, pequenos garotos armados surgiam de todas as direções, carregando fuzis maiores que eles próprios. Correu silenciosamente para a outra borda do edifício. De lá, a situação era ainda pior. Um dos meninos, inclusive, subia pela mesma escada que o casal usara, minutos atrás. Ao homem, restou tentar se esconder e rezar para que não fosse visto. Antes de se encolher ao máximo em um canto escuro, ainda ousou sussurrar:

– Merda!

4 comentários:

Nasser Pena disse...

Muito bom seu texto. Prende a atenção, uma narração minuciosa e um enredo super envolvente.
P.S. Adoro a descrição espacial que você faz.

Lucas disse...

Que ótimo Vinícius!

Uma mistura boa de Hitchcock com Allan Poe. Foi fácil visualizar todas as cenas pela narração dedicada, porém não tão reveladora. Fico com certas dúvidas, mas elas vão deixar o texto sempre vivo.

Repito, ótimo!

Abraço.

Bismarck Bório disse...

Achei incrivel, com boa presença, e bem finalistica =]
Sempre to passando por aqui! Abraço

Tainá Rei disse...

O título me fez ler o conto de maneira totalmente diferente. Muito bom.

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