quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Paz e amor

Sentado na varanda do tempo, um senhor fitava as eras passadas. Cabelos brancos e longos, barba branca e curta, olhos negros, pele áspera e enrugada. De sua cadeira de balanço, via redemoinhos de poeira nascerem e morrerem no deserto sem fim, à sua frente. Sem árvores e sem águas, a paisagem que via nem servia de consolo. Só restava uma dor sem fim.

Era hipoteticamente feliz. Tinha uma boa esposa, bons filhos, bons livros, bom gado: tudo o que um homem hipoteticamente precisa para ser feliz. Era rico, também. A herança viera em ouro. Tinha tudo para ser realmente feliz, mas o “hipoteticamente” persistia.

Às vezes, na calada da noite, sentia uma vontade louca de ter plantas em casa. De folhas largas, para que pudesse acariciar. Com espinhos, para que pudesse sentir. Com o frescor que tanto lhe fazia falta naquele deserto sem fim. Em compensação, tinha um rádio.

“We are stardust, billion year old carbon.
We are golden, caught in the devil’s bargain.
And we’ve got to get ourselves back to the garden.”

As melodias, por mais que não tivessem efeito prático, produziam doces ilusões. E, de certo modo, traziam de volta o passado a que aqueles longos cabelos assistiram, rebeldes. Anos rebeldes, aliás. Alegria, procriação. Porque se é de direito contestar, contestemos. Sejamos multidões unidas pelo “paz e amor”.


“By the time we got to Woodstock
We were half a million strong
And everywhere there was song and celebration.”

Decidido, o velho levantou-se. Nada o impediria. Entrou no quarto, recuperou a guitarra empoeirada e saiu, sem dizer adeus. Ganhou o deserto sem fim, a custo de insolação e desidratação. Nada, comparado ao que viveu. Iria voltar ao jardim, onde tudo começara e onde tudo terminaria. A qualquer custo.


“I’m going to join in a rock n’ roll band
I’m going to camp out on the land
And try and get my soul free.”

A moça do lindo sorriso o esperava, somewhere over the rainbow. E quanta história aqueles cabelos cacheados teriam guardado. Quantos beijos e sorrisos aquela boca teria preservado, intactos!

Sob o Sol escaldante, caminhou. Cantarolava aquela música indelével, tranqüila e distante. Por vezes, com monossílabos incompreensíveis. Outras, com assovios harmoniosos. Sempre, com a tranqüilidade de quem sabia esperar. Afinal, depois de tanto tempo, só restava, como obstáculo, um mero deserto sem fim.

6 comentários:

Fabio Christofoli disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Fabio Christofoli disse...

Esse texto reflete bem o que eu pensO: A felicidade nunca será suficiente para o homem. Ele, por natureza, sempre irá almejar mais.

Se tiver pequenas conquistas, irá desejar maiores. Se já tiver grandes conquistas, se contentará com as pequenas.

É sempre assim...

Foi bem captado pelo texto esse sentimento de "eu quero sempre mais..."

Sofia Antunes Miranda disse...

A insustentável leveza do ser, o triste fim de todo revolucionário.

Filipa Reis disse...

ena..
encontrei o seu blog nem sei como e adorei...
texto espetacular...
apesar de ter tudo para ser feliz, tinha de ser livre, de realizar sonhos, e nem um " mero deserto sem fim" o pode impedir..
genial.. * adorei..
beijinho*

shakespearejunior disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
shakespearejunior disse...

As vezes penso que amar é um resguardar-se a pessoa certa noutras acho que é saindo por aí descobrindo o amor em cada abraço. O que é o amor, uma aventura tardia ou uma corrida que a gente começa a caminhar depois da largada. Assim fica difícil encontrar o nosso destino. Me calo diante de tantas ideologias de um amante a moda antiga: E tõ contrário a sí é o mesmo amor. Acho que o nosso amigo aqui estava pensando nos mesmos princípios que a gente, vale a pena esperar??? Ou sair por ai se entregando, gastando o amor com estranhos amores?? Aprendo com a intrigante cantante SHAKIRA, que fora dos paucos a vida não pode ser cantada com a mesma dor que cantamos no palco. Afinal, nos chamariam de loucos. Contudo naquela "ANTOLOGIA" toda, aprendi que amar não é entregar-se por completo todavía entregar-se aos pouquinhos afim de adiar a espera da pessoa certa e tornar invitável o encontro com o amor para que nos faça recordar.

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