segunda-feira, 22 de março de 2010

Memória falha

Entre árvores, terra, flores, balanços, gangorras, ponte e lago, um fim de tarde colorido, mas corriqueiro. A falação das crianças, a indiferença dos pais. A esperança do sorveteiro e a recusa da avó em pagar tanto por um mero saquinho de pipoca.

Correria, muita correria. E criança capotando. Ralando o joelho, berrando. Casal namorando, silencioso. E os dois sorrisos de ternura que diziam tudo. Ah, a festa dos pássaros. É que pipoca sempre há, no chão.

No meio da grama da praça, a placa do “não pise”. E o inocente senso de justiça das crianças que, por imaginarem o jardineiro pisando na grama para afixar a placa, sentiam-se no direito de também pisar. Eis o futuro do país.

Ao lado da grama da praça, sem pensar em desrespeitar a lei do jardineiro incoerente, uma senhora caminhava sossegada. Os pés, quase arrastados, vinham bem próximos do chão. Seus pensamentos, entretanto, evocavam um passado distante. Ao presente, igual na agitação, distinto na paz.

Nas lembranças da gorda e velha mulher, um belo rapaz. Muito alto, pouco magro, barba escassa, cabelos negros e rebeldes. Rebelde, ele inteiro, aliás. O viva la revolución da juventude em pleno auge. E inventaram de proibir justo naquele tempo!

O rapaz, na rua, era multidão. E, apesar da repressão, todos achavam importantes os tais direitos políticos.

Direitos Políticos: ame-os ou deixe-os.

E se o país com nome de árvore novamente viu a luz, como naquela tarde, naquela praça, foi por causa de rapazes e moças assim. Muitos dos quais nem deixaram de ser jovens. Era o que concluía a senhora, orgulhosa e triste.

Há alguns anos, o filho despediu-se apressado. Tinha acabado de apresentar sua namorada, com os cabelos também pretos, mas não tão rebeldes. A senhora jurou que gostara da moça, mas a pressa do filho era tanta. Não iam nem esperar o almoço?

- Não, mãe. É hoje que a gente concerta essa joça!

Saiu pela porta e nunca mais voltou. Quando perguntados se sabiam do paradeiro de tal rapaz, a "resposta" dos vizinhos era unânime: quem? Juravam que ele nunca existiu. A polícia também. Nada de documentos, fotos ou objetos pessoais. As roupas, no quarto, certamente haviam sido compradas pela senhora que se passava por mãe. Coitada, enlouquecera. Solteirona desesperada pela necessidade de propagar seus genes.

E que, naquela tarde, caminhava sem rumo na praça cheia de regras. Pelo menos, tais regras visavam a integridade de algo. Nem que fosse da grama.

3 comentários:

Tainá Rei disse...

As regras e a integridade são contrárias. Sob regulamentos (quaisquer que sejam) nada é íntegro. Mas o que eu posso dizer já que não é permitido nem pisar na grama!!?

Lucas disse...

Perco-me na decisão de comentar os sentimentos da velha ou falar sobre regras e política.

O direito de ser nos foi tirado a muito tempo pelo dever de aceitar.

Não é exagero dizer mais uma vez que seus textos são muito bons.

Abraço Vinicius.

Alan Carfon disse...

Simplesmente brilhante.
alancarfon.blogspot.com

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