quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Fragmentos Rurais

Foto: A casa do "segundo tio".

O fusca bege murmurava alguma reclamação devido ao peso que carregava; mas, como eu bem sabia, seu fardo seria aos poucos aliviado, graças às sucessivas entregas de mercadorias que o meu padrinho realizaria durante o percurso. Nisso (e em muitas amizades) resultava ser um pequeno e generoso comerciante. Distraído, portanto, pelo barulho do carro, foi com surpresa que ouvi a sua voz:
– Você já leu Cornélio Ramos, Vinícius? – perguntou ele, sem se distrair da direção do carro.
– Só alguns contos – respondi.
– Um escritor da nossa cidade... – comentou. – Já leu o conto do Antero?
– Sim, aquele que foi perseguido e depois morto... – confirmei.
– É, e essa história toda começou bem ali – disse ele, apontando para algum lugar à direita. – Fica de olho desse lado da pista que tem uma cruz...
De fato, olhei. Esperei, ansioso, para ver a tal cruz. Até que meu tio desse o sinal e eu olhasse ainda com mais atenção. Acontece que o carro passou rápido e eu não a vi.

Com a aproximação daquele monumento de madeira, fui logo tirando o cinto de segurança, já que conhecia bem a tarefa de toda pessoa que se sentasse no banco da frente, ao lado do motorista.
– Você abre a porteira? – perguntou o meu padrinho.
– Abro – respondi, puxando a maçaneta da porta do carro e tratando de fechá-la bem devagar, logo em seguida. Sabia que qualquer índice de brutalidade naquele ato custaria uma repreensão.
Talvez, de todas as outras que abri pela frente, aquela primeira tenha sido a melhor porteira. Fácil de abrir, bem leve e sem o perigo eminente de desmontar-se. Mamão com açúcar, se comparada com as outras e com os malditos colchetes...
Quando a fechei, contudo, já do lado de lá, vi que o carro não parara. Confesso que receei estar sendo deixado para trás, mas continuei andando, como se nada tivesse acontecido. Até que o carro parasse, eu o alcançasse e entrasse. Meu padrinho nem comentou nada, mas a julgar pelo fato de o carro estar desligado, considero a possibilidade de que ele estivesse apenas aproveitando o embalo para economizar gasolina.

Não sei se mencionei a presença do meu pai... Na verdade, sei que não. Então, agora, que fique mencionado. Ele tinha ido no banco de trás, por uma recomendação de meu padrinho quanto às minhas “pernas mais longas”. Mas o fato que interessa aqui é o atalho que tomamos, sugerido pelo agora mencionado e que foi dar justo no córrego em que ele esperava haver uma pinguela.
Não havia. Rodou. E eu de tênis. E ele de sapato.
– Me dá essa sacola – disse ele.
Entreguei, sem imaginar o que ele pretendia.
– Agora monta nas minhas costas.
– Quê?
– É melhor um par de calçados molhados do que dois.
Não discuti. Montei. E atravessamos o córrego.

Depois caminhamos, vimos e fotografamos corujas e paisagens, subimos e descemos ladeiras, caminhamos mais um pouco e avistamos a casa do primeiro tio. Toda a família estava de fora. O primo, bem vestido, jogava seus pertences dentro do carro que guiaria até a cidade.
A reação do tio, ao me ver, tal como tinha previsto para o meu pai, minutos atrás, não foi outra se não aqueles risos.
– Uai, o Vinícius por aqui? Que milagre é esse? – indagou.
A tia acompanhou-o nos risos, enquanto o primo preocupava-se com alguma coisa do carro.
– Resolvi vir passear – respondi. – Descansar a cabeça.
Sem crer na veracidade dos poderes mágicos daquele lugar, de tranqüilizar a alma e eliminar o stress, fui tratando de me despedir e rumar para a casa do outro tio.

Aquela, por sua vez, parecia deserta. Todas as janelas e portas abertas, é verdade. Mas nem sinal de alguém por aquelas bandas. Entramos na cozinha – que era separada da casa – e, ao atravessarmos uma pequena área cimentada, meu pai foi logo para a janela da sala.
– Ô de casa! – chamou ele.
Meu tio, coitado, levou um susto. Estava deitado, assistindo televisão. Sua primeira reação foi levantar-se e relatar o seu espanto:
– Vocês, por aqui? Ninguém nunca vem aqui...
Já sentados no sofá, após atravessar uma varanda repleta de marimbondos d’um tamanho de assustar, conversamos muito. Perguntou sobre as notas da escola, a família e os projetos do futuro. Respondi e perguntei sobre o vestibular da filha dele, a estadia na roça e tantas outras coisas de que não me recordo mais.
Depois, meu pai e eu tratamos de cumprir as tarefas de que fomos incumbidos pela minha mãe: escolhemos um grande pau de bambu, cortamos e nos dirigimos para baixo do pé de manga. De início, meu pai cutucaria as frutas e eu apanharia. Mas – não sei por que – acabamos por trocar de tarefas. Por fim, quase enchemos de manga duas sacolas.
Enfim, veio a chuva. Era esperar que passasse e rumar para a fazenda de meu padrinho, para irmos embora. Quando passou, no entanto, e começamos a nossa caminhada, nem desconfiamos de que ainda ajudaríamos meu padrinho a arrastar alguns troncos, pôr sal para o gado e consertar algumas cercas e os malditos colchetes.
Chegamos em casa bem mais tarde que previsto, o que custou alguns protestos de minha mãe. Mas quanto a esse negócio de fazer bem para a cabeça, apaziguar o espírito e toda aquela lengalenga, que se tenha certeza: funciona mesmo.

6 comentários:

Flá Romani... disse...

Olha, nunca tinha entrado no seu blog....vc é um escritor e tanto heim!!!! Adorei seu texto.... parabéns

Ana Clara F. disse...

Adorei a historia, você conta de um jeito que queremos ler até o final . Gostie mesmo, parabéns :D

Marcos Costa Melo disse...

Clap, clap, clap!

Vida inteligente na blogosfera!

Como é bom encontrar isso de vez em quando: textos que realmente nos dão vontade de ler até o final. Escrita simples, mas bem amarrada, redondinha.

Parabéns.

abs
www.euforiamelancolica.blogspot.com

Anônimo disse...

Parabéns pelo texto, além de escrever bem sabe como conduzir a história.

Bjs

disse...

Bom conhecer seu blog, gostei muito. Sua escrita é leve, maciça, bem construída. Me lembrou muito nosso querido Machado!

Parabéns!

Cecília

http://odecimoblog.blogspot.com

Equilibrista disse...

Muito bom.
Me fez lembrar de uma certa temporada na roça...

Só falta escrever um livro. Você tem futuro.
Parabéns!

E olha só, tem um Selo pra vc lá no Equilibrio Bambo.
Passa lá pra pegar.

;)

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