Levemente inspirado em “Dom Casmurro”,
do mestre-perpétuo Machado de Assis.
do mestre-perpétuo Machado de Assis.
Tenho tentado me lembrar das passadas – o agradável som da infância. Ela usava – só para se fazer notar – uma daquelas sandálias rasteiras de madeira, que ao tocarem o chão, durante sua correria até a venda da esquina, produziam tais ondas sonoras de longo alcance que se difratavam para tão bem chegarem aos meus ouvidos. Ficava a expectativa – que dava dó, dó de esperar – se aquelas passadas a guiariam para a venda ou – e o meu coração acelerava com essa possibilidade – para a minha casa.
Taque, taque, taque, taque...
Uma vez ela veio. Precisava de ajuda com a prova do dia seguinte. Sim, éramos colegas de escola. Só não éramos da mesma sala, mas a série e os professores eram os mesmos. E eu podia ajudá-la com os estudos: entendia (quase) tudo de matemática. Acontece que todos aqueles cálculos precisavam ser vistos de perto pelo aluno e pelo professor. Não dispúnhamos de quadro-negro; o jeito foi nos aproximar um do outro e nos atentar para as equações no papel bem a nossa frente. Mas – sei lá – as incógnitas do lado pareciam bem mais intrigantes que os Mistérios da Humanidade: o legado dos Astecas, os segredos de Ré e a real intenção de Alexandre, o Grande.
Adultos, conservamos o gosto pelas equações. E ela sempre estava disposta a calcular comigo nas horas vagas. Não nos casamos, apenas passamos a morar juntos. E gostávamos de cada pedacinho um do outro. Das manias, dos descuidos, dos cuidados e das brincadeiras. E as passadas, mesmo que se fizessem ouvir bem na hora do trabalho, em casa, arrancavam de mim aquele sorriso – o da infância.
– Que calor, hein? – comentou ela, certo dia.
– É o nosso amor esquentando o mundo – eu expliquei.
– E será que todo esse amor serve pra arranjar um pouco de chuva? – brincou ela.
Como eu era patético, com aquelas explicações. E que fique claro que essa, do aquecimento global, não foi a única. Mas como a própria idiotice da frase expressa, aquilo tudo era o amor. Ela apenas sorria, para depois continuar as famosas passadas que a mim; a mim tanto alegravam.
Taque, taque, taque...
Costumávamos ir ao parque, religiosamente, nos domingos. Era a melhor maneira – segundo ambos os corações – de se descansar. Aquele momento que passávamos juntos compensava toda a semana de trabalho. Ou quem sabe possa ser mais ambicioso e dizer que compensava toda a vida. Cresceu junto a nós a paixão pela natureza e apenas aquela brisa, aquele murmúrio dos insetos, aquela sinfonia ornítica e as folhas secas no chão eram capazes de apaziguar nossas mentes.
Um dia, porém, uma bela ave atraiu a atenção da amada. Talvez tenha sido o canto – eu não sei cantar. Quem sabe tenha sido a plumagem – a minha não é tão bela assim. Pode ter sido a paciência – a minha já é curta. Ou quem sabe a alma.
E a partir de então, não mais se filosofa na fabulosa vida dos domingos.
Não que ela lamentasse as qualidades da ave que não tenho – não lamentava nada. Nem chegou a comentar. Mas há situações que dispensam comentários. E o que sucedia estava claro para quem se prestasse a observar. A ave despertou na moça das passadas o senso de aventura que eu não fora capaz de manter. E o calor nunca mais foi o mesmo.
– Quanta chuva, hein? – comentou ela, numa tarde de dezembro.
– É o que o nosso amor trouxe – respondi, convicto. – Assim como você queria.
Aquilo gelou o nosso sol. Sol frio, uma verdadeira Guerra Fria. Nenhuma explicação, nenhuma relação direta. Até mesmo os conflitos indiretos faltavam – aquele foi o único.
Pois que hoje me arrependo daquela insinuação. Afinal, quem sabe ela esquecesse a ave dali a alguns dias? Diante daquela frase, contudo, seria um tanto mais difícil. É que a imagem de uma desconfiança alheia pode ter mais força que a de uma desonestidade própria.
A vida, a essa altura, é um desgaste contínuo. Eu trabalhando muito, as passadas cada vez mais leves, os cuidados e os descuidos menos espontâneos e os domingos no parque sempre reavivando o fantasma daquela ave.
Apesar de tudo, lá; lá longe ainda mora uma esperança.
Taque...
Ah, se se pudesse recuperar agora a infância! Trazer de volta, para a realidade, as minhas reminiscências perdidas... Quem sabe o ritmo da vida mudasse e as cores fossem menos frias... Quem sabe – até mesmo – os sons tivessem a mesma majestade daquelas gloriosas passadas de outrora.
13 comentários:
Muito bom... Me lembrou Casimiro de Abreu...Acho que na vida todos temos momentos em que a infância nos traz uma tremenda saudade...
Creio que o seu texto remete bem ao tema ao qual se propos a escrever...
O tema é pertinente a todos nós que um dia já lembramos com nostalgia de nossa querida infancia...
Grande abraço,
http://jc-newlife.blogspot.com/
O que dizer do seu texto? Simplesmente BELISSIMO!!!
Me apaixonei pela forma doce, suave e envolvente como o escreveu...parabéns!
Velhos tempos, se eu pudesse viver tudo de novo não sei se gostaria mas foram bons momentos aqueles...
abraço
http://paranoiaelucidez.blogspot.com/
Nossa! Vc Gosta muito de literatura... Dom Casmurro, Fernando pessoas...
Parabéns
Que profundo!
Gostei dos taque, taque, taque.
Realmente sempre ficam na memória os mínimos detalhes possíveis.
E são esses pequenos detalhes que nos fazem lembrar de momentos de uma vida inteira.
Muito bom.
Taque ;)
Taque, taque, taque...
Adorei o texto! Parece mesmo Dom Casmurro. Você tem o dom de escrever um texto que prende o leitor. Não consegui me conter até ler todo. Muito, muito bom.
Nós só damos conta da importância, quando perdemos. E a infância é uma delas. Eu escrevi um post sobre os sonhos de criança. E que muita gente se identificou com que tinha escrito.
Gostei do conto, principalmente do paralelo que fez com a ave e a desconfiança.
PS.Obrigado pelo comentário em meu blog. Realmente eu não sabia daqueles detalhes sobre a ressaca.
Mas quem escreve com essa sensibilidade certamente possui a beleza da infância dentro de si...
Parabéns pelo conjunto da obra. Adorei!!
A imagem do template está linda..
Certo, disseste em comentário a meu humilde poema que era genial.
Não sei se erro em dizer que vossa prosa é tão quanto, ou mais, genial.
Foi ótimo tê-lo lido.
E quanto a dor do texto, Clarice a explica (analisa) melhor que eu.
_
"Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida." - Clarice Lispector
Que belo texto!!!!
Bom, muito bom.
e deveras Fato, tudo que tem nele.
parabens;.
Então... Para ser sincero a Escola Literária de Casimiro de Abreu não é a que mais me chama a atenção... A leitura de Casimiro é gostosa quando se está preparado para tal...
Também visitarei seu Blog constantemente, gosto da sua linha e da forma como escreve, de maneira limpa e com profundidade.
Grande abraço,
Admiro alguem gostar tanto de poemas e coisas assim... a única coisa que me anima nesse momento é um livro de harry potter!
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